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“Christa Wolf cria narrativas sobre quem eram as mulheres de Tróia”, afirma Luiza Romão

Convidada pela Fundação do Livro e Leitura de Ribeirão Preto, a poeta, atriz e slammer participou do quadro online e gratuito “Defenda o seu Best” realizado nessa quinta-feira (10), e debateu o seu livro preferido “Cassandra”, da escritora Christa Wolf, com mediação da atriz Fernanda Machado


O projeto 40tena Cultural da Fundação do Livro e Leitura de Ribeirão Preto promoveu nesta quinta-feira (10) mais um quadro “Defenda o seu Best”. A poeta convidada, Luiza Romão, escolheu o clássico livro mitológico “Cassandra”, de Christa Wolf, para debater e comentar, com a presença da atriz Fernanda Carla Machado como mediadora da atividade. A partir das 19h, a transmissão gratuita foi realizada via Instagram (@fundacaolivrorp), Youtube e também pela plataforma oficial da instituição.



O livro “Cassandra” foi lançado em 1983 na extinta República Democrática Alemã. Ele conta a história de uma filha dos reis troianos Príamo e Hécuba que logo no início da trama já se apresenta como prisioneira de Agamenon. Cassandra só tem algumas horas de vida quando chega a Micenas, e então passa a refletir sobre o que foi sua vida em um monólogo poético: fala de sua infância, do rompimento com o pai, de suas visões e dos sofrimentos vividos durante a guerra de Tróia. Autora dessa obra, Christa Wolf é considerada a mais importante escritora da Alemanha Oriental, tendo sido também ensaísta e crítica literária. Ativista contra o partido Nazista, ela foi inclusive filiada ao Partido Socialista alemão.


Já Luiza Romão, além de poeta, também é atriz, slammer, performer, feminista, e autora dos livros Sangria e Coquetel Motolove (ambos publicados pelo Selo Doburro). Atualmente, desenvolve mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada, estudando o poetry slam no Brasil. Ela introduziu a live contando sobre sua conexão antiga com a literatura grega, que se iniciou quando ainda era criança. “Meu pai é filósofo, então sempre me contou as histórias de Ulisses, na Odisseia, e sempre me falou sobre a Ilíada”. Foi estudar Artes Cênicas em São Paulo, na USP, e ali também teve um acesso amplo à dramaturgia grega. “Eu pirei lendo sobre Medeia, Orestes, Agamenon… e então li a Ilíada e fiquei ainda mais fascinada”.


O que mais a surpreendeu no poema épico homérico foi como essa história de guerra, que funda a ideia de literatura, é justamente a história da dizimação de um povo. “Eu li a Ilíada e pensei: ‘esse é o estudo da virilidade dos corpos masculinos’”. E foi logo em seguida que Luiza teve seu primeiro encontro com a literatura de Christa Wolf, que de alguma maneira representa o oposto da obra de Homero: Cassandra, afinal, descreve a vida das mulheres que viveram a Guerra de Tróia.


Para definir a personagem Cassandra, Luiza Romão lança mão de um dicionário de mitologia grega: “A mais infeliz das filhas de Príamo e Hécuba”, citou. Pitonisa, Cassandra era uma sacerdotisa do Deus do Sol, Apolo, que segundo o dicionário teria se enamorado dela. Mas Luiza Romão tem outras palavras para o ocorrido: “O que acontece de verdade é que Apolo tenta estuprá-la. Sendo o Deus das adivinhações, ele tenta se deitar com ela, que se recusa, e então ele cospe nos seus lábios e diz: ‘Você vai adivinhar o futuro, mas ninguém vai acreditar em você’. E o dicionário romantiza isso e ainda diz que ela era louca”, contou na live. A personagem ainda tem passagens com outros nomes conhecidos da história de Troia, como o guerreiro Ajax, que também a teria estuprado. “A Christa Wolf vai reler essa história fazendo um acerto de contas”.


As mulheres em Cassandra


Com narrativa em primeira pessoa, Cassandra tem contato com inúmeras personagens femininas ao longo da trama – algo que chamou muito a atenção de Luiza Romão quando conheceu o livro. “As mulheres quase não aparecem em Homero, é realmente focado nos guerreiros. Elas só se mostram raramente, entre as batalhas. O interessante da literatura de Christa é que ela vai criar narrativas sobre quem eram essas mulheres: Hécuba, Cassandra, e quantas das outras que estão também fora da cidade de Tróia, que são artesãs, campesinas e não estão dentro dessa aristocracia”.


Até mesmo a famosa personagem Helena aparece na obra, mas de forma inusitada. “É óbvio que Homero não ia falar que a Guerra de Tróia foi causada na verdade pela disputa de um canal – Tróia sequer ficaria na Grécia e sim na Turquia – e o que estava em jogo não era uma mulher, era uma rota comercial. Então eles forjam essa ideia de Helena para iniciar a guerra”, contou Romão. Ela lembrou que Páris, filho também de Príamo, chega numa expedição justamente para negociar o comércio dessa região Mediterrânea, e então se apaixona por Helena e a rapta. “Só que ninguém sabe se Helena de fato esteve em Tróia: tem histórias que dizem que ela foi para o Egito. E os gregos começam a guerra supostamente para recuperar a honra de Menelau. É a maior fake news da história da literatura”, brincou a poeta.


A mediadora Fernanda Machado, que é atriz, performer e diretora teatral, leu um trecho da suposta chegada de Helena à Tróia em Cassandra, em que na verdade a figura está coberta de véus. “É interessante essa ideia de Helena não estar em Tróia. Eu nunca tinha visto uma versão de que ela tinha sido apenas um truque dos gregos”, refletiu, e Luiza Romão acrescentou: “Pois é, ela é um truque, uma fake news. E Cassandra mostra que, antes de isso se espalhar, as mulheres podiam participar do Conselho, nem eram forçadas a se casar, e após a invenção de Helena há uma virada, uma militarização, e existe uma justificativa para Tróia se tornar uma cidade-Estado”.


Apesar do enorme espaço de tempo que separa a Grécia Antiga da atualidade, Luiza comparou essa passagem com a realidade brasileira de hoje. “Tudo isso diz muito sobre o nosso país atual....da criação de mentiras, notícias bombásticas e formulação de discursos que legitimam matanças e guerras”.


Ainda sobre a força das mulheres no livro, Fernanda e Luiza discutem sobre a relação entre a personagem Cassandra e seu pai, Príamo. “Ela sempre tinha sido a filha predileta dele, mas cada vez que Tróia vai se militarizando, Príamo fica mais cadavérico, e Cassandra se posiciona contra Tróia”, contou Luiza. Fernanda concordou: “É uma passagem muito interessante, porque ela está ali rompendo com o patriarcado, bancando a sua crença e sua voz”.


A viagem para a Grécia e seus frutos


Luiza Romão também contou na live sobre o próximo livro que vai lançar no primeiro semestre de 2021, que é também uma releitura da Ilíada. Por causa de sua paixão pelas histórias mitológicas e pela nova obra poética, a escritora alimentou o desejo de conhecer a Grécia pessoalmente. “Eu tinha lido Cassandra antes de ir e depois também. Eu fui no portão de Micenas, onde estão os leões esculpidos descritos no livro, e os museus arqueológicos são muito incríveis. Em Creta, que fica bem no meio do Mediterrâneo, você tem muitas representações de divindades femininas, que depois foram apagadas dos panteões dos deuses”, lembrou.


A poeta também citou sua visita à Acrópole grega, em que são desenhados vários murais de gregos vencendo monstros. “Fiquei surpresa quando visitei um dos lados desses murais e encontrei as Amazonas”. Personagens importantes também em Cassandra, essas figuras mitológicas eram mulheres militarizadas, que teriam lutado na Guerra de Tróia apesar de não aparecerem na literatura de Homero. “Elas não performavam feminilidade de forma alguma e foram retratadas como monstros na Acrópole, assim como foram excluídas da Ilíada”.

Em homenagem a todas essas personagens, Luiza revelou que, em seu próximo livro, escreveu um poema sobre cada uma. Na live, leu alguns trechos sobre Hécuba, Pentesiléia (rainha das Amazonas), e sobre a própria Cassandra.

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